Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo 0611149

Data
14/06/2006
Relator
Paulo Valério
Fonte
Decisão
Provido parcialmente.

Arma proibida Substâncias explosivas


Sumário

I - Para a delimitação do tipo contido no nº 1 do artigo 275º do Código Penal deve ser adoptado um conceito restrito de substância tóxica, em que a nota saliente seja a sua capacidade para produzir, através de processos químicos ou bioquímicos, a morte ou lesão corporal grave de uma pessoa. Só assim se justifica a equiparação dos produtos tóxicos, em termos de perigosidade, às substâncias «asfixiantes, radioactivas ou corrosivas», também abrangidas por aquele nº 1.
II - Todos os restantes produtos tóxicos, como é o caso dos produtos irritantes, devem ser incluídos na previsão do no nº 3 do artigo 275º do Código Penal.


Texto da decisão

Acórdão em audiência na 1.ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto

RELATÓRIO

1- No ..º juízo do Tribunal Judicial da Maia, no processo acima referido, foi o arguido B………., julgado em processo comum, com tribunal singular, e condenado, pela prática do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 275º, n.º 1 do CodPenal, na pena de dois anos e dois meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de três anos



2- Inconformado, interpôs recurso o arguido, concluindo do seguinte modo:

a sentença recorrida adoptou um conceito lato de substância tóxica para delimitação do tipo contido no n° 1 do art° 275° do CódPenal, sendo que na previsão do n° 1 do art° 275° do CodPenal devem englobar-se, apenas, as armas, enqenhos e substâncias que, não atingindo o qrau de perigosidade das enunciadas sob o n° 2 (engenhos e substancias capazes de produzir explosão nuclear), são, no entanto, particularmente perigosas, podendo causar a morte ou lesões da inteqridade física particularmente qraves, devendo ser adoptado um conceito restrito de substância tóxica ; todos os restantes produtos tóxicos, como é o caso dos produtos irritantes, em que se inclui o detido pelo arguido, devem ser punidos nos termos previstos no n° 3 do artigo 275°, ou seja, com prisão até 2 anos ou multa até 240 dias;

não deve ser aplicada pena de prisão superior a 6 meses e suspensa por 1 ano



3- Nesta Relação, o Exmo PGA pronunciou-se no sentido de ser concedido provimento parcial ao recurso, enquadrando-se a conduta no n.º 3 do art. 275.º o CodPenal, devendo a pena ser de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos



4- Foram colhidos os vistos legais e teve lugar a audiência de discussão e julgamento.

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FUNDAMENTAÇÃO

Os factos

Na 1.ª instância deram-se como provados os seguintes factos:

1) No dia 21 de Julho de 2003, cerca das 21 horas e 30 minutos, na Rua ………., na Maia, na sequência de uma chamada telefónica, o agente da P.S.P. C………., abordou o arguido, quando este estava dentro do automóvel com a matrícula ..-..-TO e efectuou uma busca no interior desse automóvel.

2) Nessa busca, encontrou no interior do aludido automóvel, uma embalagem de spray parcialmente cheia, com as seguintes indicações no rótulo: “Anti-agression, gel liquide, noveau, 75% Magnum, C.B.M., Reservé aux profissionelles de la securité: Police, Gerdarmeria, Forces Armées”.

3) No contra-rótulo daquela embalagam estavam inscritas indicações em francês sobre a utilização, efeitos e síntomas, modo de emprego e antídoto.

4) O princípio activo da substância contida na embalagem é o 2-clorobenzalmalononitrilo ou gás CS, substância lacrimógenea que apresenta efeitos tóxicos que incluem propriedades irritantes, particularmente para os olhos, mucosas, pele e vias respiratórias, e que, quando ingerida ou aplicada a um corpo vivo, prejudica as funções vitais.

5) O arguido tinha a posse da referida embalagem, trazendo-a consigo no seu automóvel para eventualmente utilizá-la, despejando o seu conteúdo em pessoas.

6) O arguido conhecia as características da substância contida na embalagem em questão, conhecia que tal produto apresenta propriedades irritantes, particularmente para os olhos, mucosas, pele e vias respiratórias, e que, quando ingerida ou aplicada a um corpo vivo, prejudica as funções vitais.

7) Não obstante quis deter aquela substância nas mencionadas circunstâncias, agindo de modo livre, deliberado e consciente, apesar de saber que a sua conduta era proibida e punida por lei.

8) O arguido confessou integralmente os factos, de modo livre e sem reservas, revelando-se arrependido.

9) São conhecidos ao arguido os seguintes antecedentes criminais à data da prática dos factos agora julgados:

foi condenado pela prática, em 17.03.1992, de um crime de roubo, na pena de três anos de prisão, por acórdão de 27.05.1993;

foi condenado pela prática, em 07.06.1992, de um crime de roubo, na pena de três anos de prisão, por acórdão de 01.04.1993;

foi condenado pela prática, em 07.07.1992, de um crime de roubo, na forma tentada, na pena de sete meses de prisão, suspensa na sua execução por dois anos, por sentença de 15.06.1993;

foi condenado pela prática, em 31.05.1992, de um crime de roubo, na pena de dois anos e dez meses de prisão, por acórdão de 17.06.1993, à qual foi perdoada um ano de prisão;

foi condenado pela prática, em 26.05.1993, de um crime de roubo, na pena de três anos de prisão, por sentença de 29.06.1993;

foi condenado pela prática, em 05.06.1992, de um crime de roubo, na pena de três anos de prisão, por acórdão de 13.07.1993;

em cúmulo jurídico de todas as supra referidas penas, foi condenado na pena única de sete anos de prisão, à qual foram perdoados 14 meses;

a referida pena única foi julgada extinta pelo cumprimento, tendo o arguido sido definitivamente libertado em 06.04.1999.

10. O arguido tem o 9.º ano de escolaridade; vive com os pais; tem um filho menor de idade; é vendedor, auferindo um rendimento mensal de € 500,00; paga uma prestação de alimentos no valor de € 200,00 ao seu filho
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O direito

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões formuladas pelos recorrentes, extraídas das motivações apresentadas, cabe agora conhecer da questão ali suscitada, que se traduz em saber se a substância (gás) que o arguido trazia consigo integra a previsão do n.º 1 do art° 275° do CódPenal, ou a previsão do n.º 3 deste mesmo normativo legal

A sentença recorrida adoptou um conceito lato de substância tóxica para delimitação do tipo contido no n° 1 do art° 275.° do CódPenal,

Como é sabido, considerando o actual pensamento penal, a interpretação em direito penal está ancorada no pensamento teleológico, ou seja, na consideração de que a interpretação tem que ter como fim a defesa daquele preciso e concreto bem jurídico que a norma penal incriminadora quer proteger (consideração que desde logo exclui a possibilidade de uma interpretação geral e abstracta que cubra todo o direito penal), ponderação esta à qual devemos juntar a chamada “odiosa restringenda: isto é, a norma incriminadora deve ser sempre interpretada restritivamente quando for claro ser esse o sentido mais razoável.

Acresce que a interpretação restritiva de substância tóxica, assente na perigosidade própria do produto na criação de perigos para a vida ou a saúde das pessoas se impõe ainda pelo recurso ao principio constitucional da proporcionalidade, o qual, segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3." ed., Coimbra, 1993, p; 153), se desdobra em três subprincípios: (1) princípio da adequação, isto é, as medidas restritivas legalmente previstas devem revelar-se como meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei (salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); (2) princípio da exigibilidade, ou seja, as medidas restritivas previstas na lei devem revelar-se necessárias (tornaram-se exigíveis), porque os fins visados pela lei não podiam ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias); (3) princípio da proporcionalidade em sentido restrito, que significa que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa 'justa medida', impedindo-se a adopção de medidas legais restritivas desproporcionadas, excessivas, em relação aos fins obtidos".

A ideia geral unificadora do princípio da proporcionalidade é a de que o meio utilizado para atingir certo objectivo deve estar numa determinada relação com esse objectivo. A avaliação a que há que proceder para aferir da proporcionalidade incide sobre um meio, que é dirigido a um certo fim, e implica a apreciação da respectiva idoneidade, necessidade e racionalidade à prossecução do fim em vista.

Ora, neste entendimento das coisas não podemos deixar de fazer nossas as palavras do Ac RL (p. n.º 1960720004-3, in www.dgsi.pt), cujo sumário diz: I- Para a delimitação do tipo contido no nº 1 do artigo 275º do Código Penal deve ser adoptado um conceito restrito de substância tóxica em que a nota saliente seja a sua capacidade para produzir, através de processos químicos ou bioquímicos, a morte ou lesão corporal grave de uma pessoa. Só assim se justifica a equiparação dos produtos tóxicos, em termos de perigosidade, às substâncias «asfixiantes, radioactivas ou corrosivas», também abrangidas por aquele nº 1.

II – Todos os restantes produtos tóxicos, como é o caso dos produtos irritantes, devem ser incluídos na previsão do no nº 3 do artigo 275º do Código Penal. E citando tal decisão, «o legislador, através da nova redacção dada àquele preceito pela Lei n° 98/2001, de 25 de Agosto, quis englobar no n° 1 apenas as armas, engenhos e substâncias que, não atingindo o grau de perigosidade das enunciadas sob o n° 2 (engenhos e substancias capazes de produzir explosão nuclear), são, no entanto, particularmente perigosas, podendo causar a morte ou lesões da integridade física particularmente graves. Por isso, o conceito de substância tóxica não pode, neste contexto, ter tamanha amplitude. Se assim fosse, punir-se-ia a detenção de um spray com uma substância não letal com prisão de 2 a 5 anos quando a detenção de uma pistola de calibre 6.35, cuío, grau de perigosidade é muito maior, é punida com prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, o que não poderia deixar de representar uma contradição valorativa do sistema que se quer coerente... só assim se justifica a equiparação dos produtos tóxicos, em termos de perigosidade, às substâncias «asfixiantes, radioactivas ou corrosivas», também abrangidas por aquele n° 1».

Consideramos, pois, que a conduta do arguido integra a previsão incriminadora do n.º 3 do art 275.º do CodPenal, punível com prisão até 2 anos ou multa até 240 dias



Passando agora à determinação da pena concreta, temos que considerar que no CodPenal se comete à culpa a função (única) de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração positiva das normas e valores) a função de fornecer uma moldura de prevenção cujo limite máximo é dado pela medida óptima da tutela dos bens jurídicos ---- dentro do que é consentido pela culpa ---- e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o"quantum" exacto da pena, dentro da referida moldura de prevenção, que melhor sirva as exigências de socialização do agente (ou, em certos casos, de advertência e/ou de segurança): Ou seja, a aplicação das penas visa a protecção de bens jurídicos, entendida comc tutela da crença a confiança da comunidade na sua ordem jurídico-penal e a reintegração social do agente, apresentando-se a prevenção geral positiva como finalidade primordial a prosseguir e nunca podendo a prevenção especial positiva pôr em causa o mínimo de pena imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada. (Ac. STJ de 30 de Junho de 1999, proc. n° 501/99-3" SASTJ, n° 32, 91).

Dito isto, temos agora as circunstâncias concretas seguintes: não houve consequências da actuação do arguido ao deter o gás em causa; o dolo normal; é praticamente irrelevante a confissão dadas as circunstâncias em que o produto foi apreendido; é acentuada a necessidade de prevenir a prática de actos desta natureza, quer pela sua frequência, quer pelos perigos que os mesmos comportam; o arguido é, actualmente, pessoa socialmente integrada, o que diminui a exigência de prevenção especial; apesar de o arguido ter várias condenações anteriores por crimes de roubo, os factos respectivos aconteceram em 1992 (a maioria) e em 1993 (um deles), o que parece revelar que se tratou de um período perturbado da vida do arguido, entretanto aparentemente superado, a traduzir-se, ainda no campo da prevenção, num menor grau de necessidade.

Tudo a impor a condenação na pena de 1 ano e 4 meses de prisão, estando excluída a pena alternativa de multa por ser manifestamente inadequada ao caso concreto, pena que se suspende pelo período de 3 anos
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DECISÃO

Pelos fundamentos expostos:

I- Concede-se parcial provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida, e assim condena-se o arguido, como autor material de prática do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 275.º, n.º 3 do CodPenal, na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 (três) anos



II- Sem custas
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Porto, 14 de Junho de 2006

Jaime Paulo Tavares Valério

Joaquim Arménio Correia Gomes

Manuel Jorge França Moreira

José Manuel Baião Papão