Reenvio prejudicial Cooperação judiciária em matéria penal Diretiva 2004/80/CE Artigo 12.°, n.° 2 Crime de homicídio Indemnização “justa e adequada” Regimes nacionais de indemnização de vítimas de crimes dolosos violentos Indemnização dos familiares próximos da pessoa falecida Conceito de “vítimas” Regime de indemnização “em cascata” segundo a ordem de devolução sucessória Legislação nacional que exclui o pagamento de uma indemnização aos outros familiares da pessoa falecida se existirem filhos e um cônjuge sobrevivo Pais, irmãos e irmãs da pessoa falecida
Sumário
Acórdão do Tribunal de Justiça (Quinta Secção) de 7 de novembro de 2024.
UD e o. contra Presidenza del Consiglio dei Ministri e Ministero dell'Interno.
Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Diretiva 2004/80/CE — Artigo 12.°, n.° 2 — Regimes nacionais de indemnização de vítimas de crimes dolosos violentos — Crime de homicídio — Indemnização dos familiares próximos da pessoa falecida — Conceito de “vítimas” — Regime de indemnização “em cascata” segundo a ordem de devolução sucessória — Legislação nacional que exclui o pagamento de uma indemnização aos outros familiares da pessoa falecida se existirem filhos e um cônjuge sobrevivo — Pais, irmãos e irmãs da pessoa falecida — Indemnização “justa e adequada”.
Processo C-126/23.
Texto da decisão
Edição provisória
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)
7 de novembro de 2024(*)
« Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Diretiva 2004/80/CE — Artigo 12.°, n.° 2 — Regimes nacionais de indemnização de vítimas de crimes dolosos violentos — Crime de homicídio — Indemnização dos familiares próximos da pessoa falecida — Conceito de “vítimas” — Regime de indemnização “em cascata” segundo a ordem de devolução sucessória — Legislação nacional que exclui o pagamento de uma indemnização aos outros familiares da pessoa falecida se existirem filhos e um cônjuge sobrevivo — Pais, irmãos e irmãs da pessoa falecida — Indemnização “justa e adequada” »
Processo C‑126/23 [Burdene] (1),
que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.° TFUE, pelo Tribunale Ordinario di Venezia (Tribunal Comum de Veneza, Itália), por Decisão de 15 de fevereiro de 2023, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 2 de março de 2023, no processo
UD,
QO,
VU,
LO,
CA
contra
Presidenza del Consiglio dei ministri,
Ministero dell’Interno,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),
composto por: I. Jarukaitis, presidente da Quarta Secção, exercendo funções de presidente da Quinta Secção, D. Gratsias e E. Regan (relator), juízes,
advogado‑geral: J. Richard de la Tour,
secretário: C. Di Bella, administrador,
vistos os autos e após a audiência de 21 de fevereiro de 2024,
vistas as observações apresentadas:
– em representação de QO e de UD, por G. Sicchiero, avvocato,
– em representação de LO e de VU, por M.G. Bergamo, F. Sicchiero e G. Sicchiero, avvocati,
– em representação de CA, por E. Pertile e G. Sicchiero, avvocati,
– em representação do Governo Italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por E. De Bonis, S. Fiorentino e G. Palatiello, avvocati dello Stato,
– em representação da Comissão Europeia, por E. Montaguti e S. Noë, na qualidade de agentes,
ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 8 de maio de 2024,
profere o presente
Acórdão
1 O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2004/80/CE do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa à indemnização das vítimas da criminalidade (JO 2004, L 261, p. 15), bem como dos artigos 20.° e 21.°, do artigo 33, n.° 1, e do artigo 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
2 Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe os pais, a irmã e os filhos da vítima de um homicídio à Presidenza del Consiglio dei Ministri (Presidência do Conselho de Ministros, Itália) e ao Ministero dell’Interno (Ministério da Administração Interna, Itália) a respeito da indemnização pelo Estado Italiano dos danos que sofreram em consequência desse homicídio, devido à insolvência do autor do mesmo.
Quadro jurídico
Direito da União
Decisão‑Quadro 2001/220/JAI
3 Nos termos do artigo 1.° da Decisão‑Quadro 2001/220/JAI do Conselho, de 15 de março de 2001, relativa ao estatuto da vítima em processo penal (JO 2001, L 82, p. 1), sob a epígrafe «Definições»:
«Para efeitos da presente decisão‑quadro, entende‑se por:
a) “Vítima”: a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou mental, um dano moral, ou uma perda material, diretamente causadas por ações ou omissões que infrinjam a legislação penal de um Estado‑Membro;
[...]»
Diretiva 2004/80
4 Os considerandos 5 e 10 da Diretiva 2004/80 têm a seguinte redação:
«(5) Em 15 de março de 2001, o Conselho adotou a Decisão‑Quadro 2001/220/JAI [...]. Esta decisão, com base no título VI do Tratado da União Europeia, permite que as vítimas da criminalidade solicitem uma indemnização ao autor da infração, no âmbito de uma ação penal.
[...]
(10) Frequentemente, as vítimas da criminalidade não podem obter uma indemnização junto do autor da infração, visto que este pode não dispor dos meios necessários para dar cumprimento a uma decisão de indemnização, ou porque o autor da infração não pode ser identificado ou sujeito a ação penal.»
5 O artigo 12.° do capítulo II desta diretiva, sob a epígrafe «Regimes nacionais de indemnização», dispõe:
«1. As regras sobre o acesso à indemnização em situações transfronteiras estipuladas pela presente diretiva deverão funcionar com base nos regimes de indemnização dos Estados‑Membros para as vítimas de crimes dolosos violentos praticados nos respetivos territórios.
2. Todos os Estados‑Membros deverão assegurar que a sua legislação nacional preveja a existência de um regime de indemnização das vítimas de crimes dolosos violentos praticados nos respetivos territórios, que garanta uma indemnização justa e adequada das vítimas.»
6 No capítulo III da referida diretiva, intitulado «Modalidades de aplicação», o seu artigo 17.°, sob a epígrafe «Disposições mais favoráveis», dispõe:
«A presente diretiva não obsta a que os Estados‑Membros, na medida em que tais disposições sejam compatíveis com a presente diretiva,
a) Adotem ou mantenham disposições mais favoráveis em benefício das vítimas da criminalidade ou de quaisquer outras pessoas afetadas por um crime;
b) Adotem ou mantenham disposições para efeitos de indemnização das vítimas de crimes praticados fora do seu território ou de qualquer outra pessoa afetada por tais crimes, sob reserva de eventuais condições que os Estados‑Membros possam especificar para este efeito.»
Diretiva 2012/29/UE
7 O artigo 2.° da Diretiva 2012/29/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2012, que estabelece normas mínimas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade e que substitui a Decisão‑Quadro 2001/220/JAI do Conselho (JO 2012, L 315, p. 57), prevê:
«1. Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:
a) “Vítima”:
i) uma pessoa singular que tenha sofrido um dano, nomeadamente um dano físico, moral ou emocional, ou um prejuízo material diretamente causados por um crime,
ii) os familiares de uma pessoa cuja morte tenha sido diretamente causada por um crime e que tenham sofrido um dano em consequência da morte dessa pessoa;
b) “Familiares” o cônjuge, a pessoa que vive com a vítima numa relação íntima de compromisso, num agregado familiar comum e numa base estável e permanente, os familiares em linha direta, os irmãos e as pessoas a cargo da vítima;
[...]
2. Os Estados‑Membros podem estabelecer procedimentos:
a) Para limitar o número de familiares que podem beneficiar do disposto na presente diretiva, tendo em conta as circunstâncias concretas de cada caso; e
b) No que respeita ao n.° 1, alínea a), subalínea ii), para determinar que familiares têm prioridade no que se refere ao exercício dos direitos previstos na presente diretiva.»
Direito italiano
8 O artigo 11.° da legge n.° 122 — Disposizioni per l’adempimento degli obblighi derivanti dall’appartenenza dell’Italia all’Unione europea — Legge europea 2015‑2016 (Lei n.° 122, relativa às Disposições para o Cumprimento das Obrigações Decorrentes de a Itália ser Membro da União Europeia — Lei Europeia 2015‑2016), de 7 de julho de 2016 (GURI n.° 158, de 8 de julho de 2016, p. 1), conforme alterada pelo artigo 6.° da Lei n.° 167, de 20 de novembro de 2017, e o artigo 1.°, n.os 593 a 596, da Lei n.° 145, de 30 de dezembro de 2018 (a seguir «Lei n.° 122/2016»), dispõe:
«1. Sem prejuízo da aplicação de medidas mais favoráveis às vítimas de determinados crimes previstas noutras disposições legislativas, é reconhecido à vítima de crime doloso cometido com violência sobre a pessoa e, de qualquer modo, de crime previsto no artigo 603.°‑bis do codice penale [Código Penal], com exceção dos crimes previstos nos artigos 581.° e 582.°, salvo se ocorrerem as circunstâncias agravantes previstas no artigo 583.° do Código Penal, o direito de receber uma indemnização do Estado.
2. A indemnização pela prática de crimes de homicídio, de agressão sexual ou ofensas corporais graves, em conformidade com o artigo 583.°, n.° 2, do Código Penal, [...] é devida à vítima ou aos seus herdeiros indicados no n.° 2‑bis, de acordo com a tabela fixada pelo decreto referido n.° 3. Relativamente a crimes diferentes dos acima referidos, a indemnização deve, em contrapartida, cobrir as despesas médicas e de assistência ocasionadas.
2‑bis. Se do crime resultar a morte da vítima, a indemnização é paga ao cônjuge sobrevivo e aos filhos; na falta de cônjuge e filhos, a indemnização é devida aos progenitores e, na falta de progenitores, aos irmãos que coabitassem com a vítima e estivessem a seu cargo à data da prática do crime. [...]
2‑ter. Em caso de concurso de herdeiros, a indemnização é repartida segundo as quotas‑partes previstas nas disposições do livro segundo, título II, do codice civile [(Código Civil)].
3. Os montantes das indemnizações são determinados por decreto do Ministro dell’interno [(ministro da Administração Interna, Itália)] e do Ministro della giustizia [(ministro da Justiça, Itália)], em conjunto com o Ministro dell’economia e delle finanze [(ministro da Economia e das Finanças, Itália)], a emitir no prazo de seis meses a contar da data de entrada em vigor da presente lei, dentro dos limites das disponibilidades do [Fondo di rotazione per la solidarieta’ alle vittime dei reati di tipo mafioso, delle richieste estorsive, dell’usura e dei reati intenzionali violenti (Fundo de reserva para a solidariedade com as vítimas de crimes de tipo mafioso, extorsão, usura e crimes dolosos violentos, Itália; a seguir “Fundo de Solidariedade”)] a que se refere o artigo 14.°, sendo assegurada uma reparação superior às vítimas dos crimes de agressão sexual e de homicídio e, em especial, aos filhos da vítima, em caso de homicídio cometido pelo cônjuge, ainda que separado ou divorciado, ou por pessoa com quem a vítima mantém ou manteve uma relação afetiva.»
9 Adotado em execução do artigo 11.°, n.° 3, da Lei n.° 122/2016, o artigo 1.°, n.° 1, alínea b), do decreto ministeriale — Determinazione degli importi dell’indennizzo alle vittime dei reati intenzionali violenti (Decreto Ministerial que determina os Montantes das Indemnizações para as Vítimas de Crimes Dolosos Violentos), de 22 de novembro de 2019 (GURI n.° 18, de 23 de janeiro de 2020, p. 9; a seguir «Decreto Ministerial de Execução»), prevê:
«em caso de homicídio cometido pelo cônjuge, ainda que separado ou divorciado, ou por pessoa com quem a vítima mantém ou manteve uma relação afetiva: no montante fixo de 60 000 euros em benefício exclusivo dos filhos da vítima».
Litígio no processo principal e questões prejudiciais
10 Em 18 de setembro de 2018, o Tribunale di Padova (Tribunal de Primeira Instância de Pádua, Itália) condenou o autor do homicídio da sua ex‑companheira, cometido em Itália, a uma pena de prisão de 30 anos e ordenou o pagamento de uma indemnização provisória aos familiares da vítima que se constituíram partes civis. Foram, assim, atribuídos 400 000 euros a cada um dos seus dois filhos, 120 000 euros a cada um dos seus progenitores e à sua irmã, e 30 000 euros ao seu marido do qual estava separada, mas não divorciada.
11 Em conformidade com a legislação nacional, dado que o autor do homicídio não possuía bens ou rendimentos e tendo‑lhe sido concedida proteção jurídica gratuita, o Estado Italiano pagou apenas a cada um dos dois filhos uma indemnização de 20 000 euros, ao passo que ao marido separado foi concedida uma indemnização de 16 666,66 euros.
12 Em 1 de fevereiro de 2022, os demandantes no processo principal, a saber, os progenitores, a irmã e os filhos da vítima, considerando que a Lei n.° 122/2016 tinha introduzido, em violação da Diretiva 2004/80, limitações consideráveis à concessão da indemnização às vítimas de crimes dolosos violentos, intentaram uma ação no Tribunale Ordinario di Venezia (Tribunal Comum de Veneza, Itália), que é o órgão jurisdicional de reenvio.
13 Os seus pedidos visam, uma vez afastada a aplicação do Decreto Ministerial de Execução, por ser ilegal, a determinação das quantias que lhes são devidas a título de indemnização em função do seu grau de parentesco com a vítima do homicídio, de maneira «justa e adequada», na aceção do artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2004/80, tendo em conta — após dedução, no que respeita aos filhos desta vítima, do montante que já lhes foi pago — a quantificação do dano realizada na sentença que condenou o autor desse homicídio, e isto mesmo que o Fundo de Solidariedade não disponha dos recursos financeiros necessários. A título subsidiário, estes demandantes pedem a condenação da Presidência do Conselho de Ministros, que representa o Estado Italiano, no pagamento das mesmas quantias, a título de indemnização pelos danos causados pela incorreta transposição da referida diretiva, em especial, do seu artigo 12.°
14 Em primeiro lugar, os demandantes no processo principal alegam que a limitação estabelecida pelo artigo 11.°, n.° 2 bis, da Lei n.° 122/2016, que prevê o reconhecimento da indemnização aos progenitores da vítima apenas no caso de esta não ter cônjuge sobrevivo e filhos, e aos irmãos e irmãs apenas no caso de inexistência de pessoas pertencentes às categorias anteriormente referidas, viola a obrigação de indemnização prevista no artigo 12.° da Diretiva 2004/80, uma vez que designa, entre as pessoas lesadas às quais o direito à indemnização é reconhecido, em abstrato, as que devem ser, em concreto, indemnizadas, de maneira arbitrária, sem ter em conta parâmetros justos e adequados ao caso concreto. Além disso, neste caso, a indemnização também foi concedida ao marido sobrevivo da vítima do homicídio, de quem estava separado desde 2006, ou seja, quase onze anos antes da sua morte. O direito à indemnização é assim reconhecido, ainda que a ligação afetiva se tenha tornado manifestamente menos forte ao ponto de ser quase inexistente.
15 Em segundo lugar, os demandantes no processo principal alegam que o montante de 20 000 euros concedido aos filhos da vítima de um homicídio em aplicação do Decreto Ministerial de Execução, correspondente a 5 % do montante provisório concedido por decisão judicial, não se afigura conforme com o que foi estabelecido pelo Tribunal de Justiça no n.° 69 do Acórdão de 16 de julho de 2020, Presidenza del Consiglio dei Ministri (C‑129/19, EU:C:2020:566), de acordo com o qual uma indemnização de montante fixo concedida ao abrigo de um regime nacional de indemnização das vítimas de crimes dolosos violentos deve, para ser qualificada de «justa e adequada», na aceção do artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2004/80, representar uma contribuição adequada para a reparação do dano material e não material sofridos.
16 Em terceiro lugar, os demandantes no processo principal consideram que a legislação nacional também é ilegal por fazer depender o pagamento da indemnização da condição de o Estado ter reservado os fundos necessários a esse pagamento, em violação do considerando 10 da Diretiva 2004/80.
17 As autoridades italianas salientam que a determinação do montante da indemnização no que respeita à posição dos filhos foi realizada com pleno respeito das disposições em vigor, tendo em conta os meios de subsistência do cônjuge sobrevivo. Recordam, também, que o Tribunal de Justiça, após ter indicado, no n.° 58 do Acórdão de 16 de julho de 2020, Presidenza del Consiglio dei Ministri (C‑129/19, EU:C:2020:566), que os Estados‑Membros dispõem de uma ampla margem de apreciação para determinar o montante da indemnização prevista no artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2004/80, considerou, nos n.os 65 e 69 desse acórdão, que esta disposição não se opõe a uma indemnização fixa das vítimas, exigindo apenas que essa indemnização seja «justa e adequada», o que implica que representa uma contribuição adequada para a reparação do dano material e não material sofridos pela vítima.
18 O órgão jurisdicional de reenvio considera que, para apreciar o mérito do pedido de indemnização que lhe foi submetido, baseado na transposição incorreta da Diretiva 2004/80, importa, em primeiro lugar, determinar se a legislação nacional, conforme resulta do artigo 11.°, n.os 2 bis, 2 ter e 3, da Lei n.° 122/2016, é conforme com o direito da União.
19 Este órgão jurisdicional salienta que a referida legislação nacional, que subordina o pagamento da indemnização, mesmo quando uma sentença transitada em julgado concede a determinados membros da família um direito à reparação dos seus danos e o respetivo montante, à circunstância de, no que diz respeito aos progenitores da vítima do crime de homicídio, não existir o cônjuge sobrevivo e os filhos desta vítima, e, no que diz respeito à irmã ou ao irmão da vítima, de não existir progenitores, desde que coabitassem e estivessem a cargo da vítima no momento da prática do crime, desconsidera o aspeto não patrimonial do sofrimento associado à perda violenta da vítima.
20 Por outro lado, relativamente ao cônjuge sobrevivo e aos filhos, o referido órgão jurisdicional observa que a extensão dos danos sofridos não é tida em conta. Assim, no caso em apreço, não é atribuída nenhuma importância ao facto de o cônjuge sobrevivo estar separado da vítima durante um determinado período de tempo, prevendo‑se apenas a repartição da indemnização com base nas disposições em matéria de sucessões, condicionada à capacidade do Fundo de Solidariedade. Por conseguinte, não seria tida em conta, ignorando o Acórdão de 16 de julho de 2020, Presidenza del Consiglio dei Ministri (C‑129/19, EU:C:2020:566), a gravidade das consequências do ato para as vítimas. Além disso, a indemnização a favor dos filhos foi quantificada num montante que corresponde, em larga medida, ao montante reconhecido ao cônjuge sobrevivo, que não é proporcional em relação ao montante da indemnização provisória fixada em sede penal e sem ter em conta os parâmetros usualmente aplicados em matéria de perda da relação parental, como a idade da vítima, a idade do sobrevivo, o grau de parentesco e a coabitação, com a possibilidade de aplicar correções ao montante final consoante a particularidade da situação. A quantia concedida aos filhos no caso em apreço não pode, assim, ser considerada «justa e adequada», na aceção do artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2004/80.
21 Nestas circunstâncias, o Tribunale Ordinario di Venezia (Tribunal Comum de Veneza, Itália) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:
«1) [A]tendendo ao disposto no artigo 11.°, n.° 2 bis, da [Lei n.° 122/2016], segundo o qual o pagamento da indemnização aos progenitores e à irmã de uma vítima de homicídio depende da circunstância de a vítima não ter cônjuge nem filhos, não obstante a existência de uma decisão judicial transitada em julgado que quantifica as indemnizações que lhes são devidas e condena o autor do crime no ressarcimento do dano:
é conforme com o disposto nos artigos 12.°, n.° 2, da Diretiva 2004/80, 20.° (igualdade), 21.° (não discriminação), 33.°, n.° 1 (proteção da família) e 47.° (Direito à ação e a um tribunal imparcial) da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e 1.° do Protocolo n.° 12 à CEDH [, assinada em Roma em 4 de novembro de 1950] (não discriminação) que o pagamento da indemnização aos progenitores e à irmã de uma vítima de um crime doloso violento, neste caso, [de] homicídio, previsto no artigo 11.°, n.° 2 bis, [Lei n.° 122/2006], seja subordinada à circunstância de a vítima não ter filhos nem cônjuge (no que diz respeito aos progenitores) ou de não ter progenitores (no caso dos irmãos)?
2) quanto à limitação ao pagamento da indemnização:
pode a condição imposta pelo artigo 11.°, n.° 3, da [Lei n.° 122/2006] à concessão da indemnização, mediante a expressão “em todo o caso, dentro dos limites das disponibilidades do Fundo a que se refere o [Fundo de Solidariedade]”, sem que haja nenhuma norma que imponha ao Estado italiano a afetação de montantes suscetíveis de garantir, em concreto, o pagamento das indemnizações, mesmo que determinados numa base estatística, e que, em todo o caso, sejam, em concreto, suscetíveis de garantir a indemnização dos herdeiros num prazo razoável, ser considerada uma “indemnização justa e adequada das vítimas”, em cumprimento do disposto no artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2004/80?»
Quanto à competência do Tribunal de Justiça e à admissibilidade das questões
22 O Governo Italiano questiona‑se sobre a competência do Tribunal de Justiça e a admissibilidade das questões prejudiciais pelo facto de o litígio no processo principal dizer respeito a uma situação que não é abrangida pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2004/80. Com efeito, o órgão jurisdicional de reenvio não analisou a qualidade de «vítimas», na aceção da Diretiva 2004/80, dos demandantes no processo principal. Ora, no contexto desta diretiva, o conceito de «vítimas» deve ser entendido no sentido de que designa apenas a pessoa diretamente lesada pela criminalidade dolosa violenta. Por conseguinte, a legislação nacional em causa no processo principal, ao alargar o conceito de «vítimas» a certos familiares próximos da vítima de um homicídio, é da exclusiva competência dos Estados‑Membros.
23 Por outro lado, o Governo Italiano e a Comissão consideram que a segunda questão é inadmissível. Com efeito, a decisão de reenvio não contém nenhum elemento que permita determinar se a condição relativa à capacidade financeira do Fundo de Solidariedade previsto pelo direito nacional teve impacto na determinação dos montantes de indemnização estabelecidos de forma fixa por este. Além disso, embora o órgão jurisdicional de reenvio considere que o montante da indemnização concedida, no caso em apreço, aos filhos da vítima de homicídio é insuficiente, não forneceu nenhum elemento em apoio dessa apreciação nem pediu ao Tribunal de Justiça que se pronunciasse sobre este ponto.
24 No que respeita, em primeiro lugar, à competência do Tribunal de Justiça para responder às questões prejudiciais, há que recordar que, em conformidade com o artigo 267.° TFUE, o Tribunal de Justiça é competente para interpretar os atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.
25 Nestas circunstâncias, uma vez que as duas questões prejudiciais submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio têm por objeto a interpretação da Diretiva 2004/80, em especial, do seu artigo 12.°, n.° 2, o Tribunal de Justiça é competente para responder a estas questões.
26 No que respeita, em segundo lugar, à admissibilidade destas questões, há que recordar que, de acordo com jurisprudência constante, segundo a qual as questões relativas à interpretação do direito da União submetidas pelo juiz nacional no quadro normativo e factual que define sob a sua própria responsabilidade, e cuja exatidão não cabe ao Tribunal de Justiça verificar, gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre um pedido apresentado por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (Acórdão de 11 de abril de 2024, Sozialministeriumservice e o., C‑116/23, EU:C:2024:292, n.° 29 e jurisprudência referida).
27 Quanto à primeira questão, basta constatar que a questão de saber se, no caso de homicídio, o conceito de «vítimas», na aceção do artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2004/80, deve ser suscetível de incluir os membros da família próximos da pessoa falecida devido ao crime doloso violento, diz respeito ao mérito da questão submetida e não à sua admissibilidade.
28 Quanto à segunda questão, há que recordar que, com esta, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se o artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2004/80 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro que prevê que a indemnização concedida por este último à vítima de crimes dolosos violentos é paga a esta última dentro de um limite máximo resultante do orçamento atribuído por esse Estado‑Membro a um fundo especial estabelecido para esse efeito.
29 Ora, há que observar que não resulta da decisão de reenvio nem das observações apresentadas ao Tribunal de Justiça que esse limite tenha tido qualquer impacto no montante das indemnizações atribuídas, no processo principal, pelo Estado Italiano. Além disso, embora, como resulta do n.° 20 do presente acórdão, o órgão jurisdicional de reenvio tenha indicado, nessa decisão, que o montante da indemnização concedida, no caso em apreço, aos filhos da pessoa falecida não é, em seu entender, suficiente para constituir uma indemnização «justa e adequada», na aceção do artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2004/80, não submeteu ao Tribunal de Justiça, como a Comissão observou com razão, nenhuma questão prejudicial a este respeito. Além disso, esse órgão jurisdicional não forneceu nenhum elemento de direito nacional que permita compreender melhor as modalidades de funcionamento do fundo especial nele previsto.
30 Nestas circunstâncias, há que considerar que a segunda questão é hipotética e, consequentemente, inadmissível.
31 Por conseguinte, há que responder unicamente à primeira questão.
Quanto à primeira questão
32 Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2004/80 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro que prevê um regime de indemnização das vítimas da criminalidade violenta que subordina, em caso de homicídio, o direito à indemnização dos progenitores da vítima à circunstância de esta não ter cônjuge sobrevivo e filhos, e o direito dos irmãos e irmãs da vítima à inexistência dos referidos progenitores.
33 Há que recordar que, nos termos do artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2004/80, todos os Estados‑Membros deverão assegurar que a sua legislação nacional preveja a existência de um regime de indemnização das vítimas de crimes dolosos violentos praticados nos respetivos territórios, que garanta uma indemnização justa e adequada das vítimas.
34 Como resulta do Acórdão de 16 de julho de 2020, Presidenza del Consiglio dei Ministri (C‑129/19, EU:C:2020:566, n.os 41 a 45 e 52), esta disposição impõe, assim, a cada Estado‑Membro a obrigação de criar um regime de indemnização das vítimas de qualquer crime que se enquadre nos crimes dolosos violentos praticados no seu território, quer essas vítimas se encontrarem ou não numa situação transfronteira, e isso para que os Estados‑Membros possam cumprir as suas obrigações relativas ao acesso à indemnização nesta última situação, conforme decorrem desta diretiva, uma vez que, nos termos do seu artigo 12.°, n.° 1, as disposições relativas ao acesso à indemnização numa situação transfronteiriça «deverão funcionar com base nos regimes de indemnização dos Estados‑Membros para as vítimas de crimes dolosos violentos praticados nos respetivos territórios».
35 Para responder à questão submetida, importa, antes de mais, determinar se, em caso de homicídio, as «vítimas» de crimes dolosos violentos em benefício dos quais os Estados‑Membros devem instituir, nos termos do artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2004/80, um regime nacional de indemnização incluem, além da pessoa falecida devido a esse crime, os membros da família próximos do crime, como os seus progenitores e os seus irmãos, em seguida, em caso afirmativo, se se pode considerar que um regime nacional de indemnização «em cascata» segundo a ordem de devolução sucessória, como a referida no n.° 32 do presente acórdão, garante a essas vítimas uma indemnização «justa e adequada», na aceção desta disposição.
36 No que respeita, em primeiro lugar, ao conceito de «vítimas», na aceção do artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2004/80, uma vez que nem esta disposição nem esta diretiva contêm uma definição deste conceito e que a referida disposição não faz nenhuma remissão para os direitos nacionais no que respeita ao seu significado, o referido conceito, que visa determinar as pessoas beneficiárias dos regimes nacionais de indemnização das vítimas de crimes dolosos, deve ser considerado um conceito autónomo do direito da União, que deve ser interpretado de maneira uniforme no território desta última em conformidade com o sentido habitual do termo em questão na linguagem corrente, tendo em conta os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte e o contexto em que é utilizado (v., neste sentido, Acórdão de 7 de setembro de 2023, KRI, C‑323/22, EU:C:2023:641, n.° 46 e jurisprudência referida).
37 No que respeita, primeiro, ao sentido habitual do termo «vítimas» na linguagem corrente, há que constatar que este pode ser entendido no sentido de que visa tanto as pessoas que foram, elas próprias, submetidas a crimes dolosos violentos, na sua qualidade de vítimas diretas, como os familiares próximos destas quando sofrem as consequências desse crime, na sua qualidade de vítimas indiretas.
38 Segundo, no que respeita ao objetivo prosseguido pelo artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2004/80, importa recordar que esta disposição visa assegurar ao cidadão da União o direito a uma indemnização justa e adequada pelos danos sofridos no território de um Estado‑Membro onde se encontre, impondo a cada Estado‑Membro que adote um regime de indemnização das vítimas para todos os crimes que sejam considerados crimes dolosos violentos praticados no seu território (v., neste sentido, Acórdão de 11 de outubro de 2016, Comissão/Itália, C‑601/14, EU:C:2016:759, n.° 45).
39 Embora os Estados‑Membros disponham, em princípio, de competência para precisar o alcance do conceito de crimes dolosos violentos no seu direito interno, esta competência não os autoriza, todavia, a limitar, sob pena de privar o artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2004/80 do seu efeito útil, o âmbito de aplicação do regime de indemnização das vítimas, que os Estados‑Membros devem criar em conformidade com essa diretiva, apenas a determinados crimes abrangidos por esse conceito (v., neste sentido, Acórdão de 11 de outubro de 2016, Comissão/Itália, C‑601/14, EU:C:2016:759, n.° 46).
40 Ora, há que constatar que, se o conceito de «vítimas», na aceção do artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2004/80, devesse ser interpretado, como salienta o Governo Italiano, no sentido de que incluem exclusivamente no âmbito de aplicação ratione personae desta disposição as vítimas diretas de crimes dolosos violentos, os crimes abrangidos por essa criminalidade que resultaram na morte da pessoa vítima destes não seriam abrangidos pelo âmbito de aplicação ratione materiae da referida disposição, em violação do seu objetivo.
41 Com efeito, segundo a interpretação do artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2004/80 preconizada pelo Governo Italiano, em caso de homicídio, o Estado‑Membro em causa não está obrigado a pagar nenhuma indemnização a título do regime nacional de indemnização que esta disposição lhe impõe instaurar, uma vez que, nesse caso, apenas a «vítima» do crime doloso violento faleceu, nenhuma outra pessoa, como, nomeadamente, o cônjuge sobrevivo ou os filhos, deve, em princípio, ser indemnizada nessa mesma qualidade.
42 Tal interpretação levaria a privar o artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2004/80 do essencial do seu efeito útil, uma vez que impõe aos Estados‑Membros a instauração de um regime nacional de indemnização dos crimes dolosos violentos apenas quando a pessoa que foi sujeita a esse crime sobrevive às suas lesões, mas não quando essa pessoa faleça devido a tais lesões.
43 A este respeito, importa, aliás, salientar que a proposta de Diretiva do Conselho relativa à indemnização das vítimas da criminalidade [COM(2002) 562 final] (JO 2003, C 45 E, p. 69), que visava não só facilitar o acesso à indemnização em situações em que o crime foi cometido num Estado‑Membro diferente daquele em que a vítima reside, mas também estabelecer normas mínimas em matéria de indemnização das vítimas da criminalidade, previa expressamente, no artigo 2.°, n.° 1, alínea b), que figura na parte da diretiva que estabelece essas normas mínimas, a obrigação de os Estados‑Membros indemnizarem os «familiares próximos» e as «pessoas a cargo» das vítimas falecidas na sequência das suas lesões.
44 Embora seja certo que tal esclarecimento não figura na Diretiva 2004/80, resulta, todavia, dos trabalhos preparatórios desta diretiva, em especial da proposta de compromisso apresentada pela Presidência do Conselho em 26 de março de 2004 (documento 7752/04), que isso se deve ao simples facto de o legislador da União não ter seguido a proposta relativa a este segundo objetivo, que consiste em estabelecer normas mínimas em matéria de indemnização das vítimas da criminalidade. Por conseguinte, esta circunstância não traduz de modo nenhum, que o legislador da União tenha pretendido excluir completamente do âmbito de aplicação ratione personae desta diretiva os familiares próximos da pessoa falecida devido a um ato que se enquadra na criminalidade dolosa violenta e privar, por esse facto, de qualquer proteção as pessoas que, não obstante, foram vítimas desse ato.
45 Terceiro, esta interpretação é corroborada pelo objetivo subjacente ao artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2004/80.
46 Com efeito, importa salientar que a Diretiva 2012/29, que diz respeito, nomeadamente, à proteção das vítimas da criminalidade, define o conceito de «[v]ítima», no seu artigo 2.°, n.° 1, alínea a), no sentido de que inclui, além das próprias pessoas que sofreram diretamente um dano causado por um crime, os familiares de uma pessoa cuja morte tenha sido diretamente causada por esse crime e que tenham sofrido um dano em consequência da morte dessa pessoa, visando o conceito de «[f]amiliares», em conformidade com o n.° 1, alínea b), neste artigo 2.°, o cônjuge, a pessoa que vive com a vítima numa relação íntima de compromisso, num agregado familiar comum e numa base estável e permanente, os familiares em linha direta, os irmãos e as pessoas a cargo da vítima.
47 De acordo com os trabalhos preparatórios relativos à Diretiva 2012/29, conforme resultam da exposição de motivos relativa à proposta do Parlamento Europeu e do Conselho, que estabelece normas mínimas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade [COM(2011) 275 final, p. 7], esta definição do conceito de «vítimas» justifica‑se pela consideração de que os membros da família também são afetados pelo crime cometido e, em caso de morte da vítima, são frequentemente reconhecidos como representantes desta.
48 Ora, há que considerar que a definição do conceito de «[v]ítima» enunciada no artigo 2.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2012/29 esclarece o alcance deste mesmo conceito, tal como figura no artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2004/80. Com efeito, como a Comissão salientou na página 3 da exposição de motivos referida no número anterior, a Diretiva 2012/29 destina‑se a definir o «quadro horizontal que permitirá responder às necessidades de todas as vítimas da criminalidade». Dado que as Diretivas 2004/80 e 2012/29 dizem respeito à proteção das vítimas da criminalidade, os seus âmbitos de aplicação sobrepõem‑se, como resulta do considerando 5 da Diretiva 2004/80.
49 Na audiência, o Governo Italiano alegou, no entanto, que este considerando 5 não remete para a Diretiva 2012/29, que foi adotada posteriormente à Diretiva 2004/80, mas para a Decisão‑Quadro 2001/220, que, embora substituída pela Diretiva 2012/29, era o diploma em vigor aquando da adoção da Diretiva 2004/80. Ora, o artigo 1.°, alínea a), desta decisão‑quadro define o conceito de «[v]ítima» no sentido de que visa apenas as vítimas diretas da prática de um crime. Visto que a Diretiva 2012/29 foi adotada com base no artigo 82.°, n.° 2, TFUE segundo o processo legislativo ordinário por maioria qualificada, não pode ter por efeito alterar a Diretiva 2004/80, que foi adotada com base no artigo 352.° TFUE segundo a regra da unanimidade. Por conseguinte, deve considerar‑se que a remissão efetuada pelo considerando 5 da Diretiva 2004/80 para a Decisão‑Quadro 2001/220 exclui a tomada em consideração dos desenvolvimentos legislativos posteriores que a afetaram.
50 Ora, por um lado, há que observar que esta argumentação se baseia na premissa errada de que a definição do conceito de «[v]ítima» que figura no artigo 1.°, alínea a), da Decisão‑Quadro 2001/220 já excluía necessariamente as vítimas indiretas da prática de um crime. Com efeito, embora esta disposição exigisse, para que se considere que uma pessoa tem a qualidade de «[v]ítima» da prática de um crime, que o dano sofrido por essa pessoa fosse diretamente causado por esse crime, não exigia de modo nenhum que a referida pessoa sofra, ela própria, diretamente esse crime.
51 Por outro lado, como o advogado‑geral indicou no n.° 40 das suas conclusões, a referida argumentação, que é relativa à base jurídica da Diretiva 2012/29, não é pertinente, uma vez que, como foi salientado no n.° 48 do presente acórdão, esta diretiva tem vocação para fixar o quadro geral do direito da União aplicável às vítimas da criminalidade.
52 Neste sentido, a definição do conceito de «[v]ítima» que figura no artigo 2.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2012/29 deve ser entendida no sentido de que tem por único objetivo esclarecer o alcance do que figurava no artigo 1.°, alínea a), da Decisão‑Quadro 2001/220, para o qual remetia a Diretiva 2004/80. Por conseguinte, esta definição não altera o alcance do conceito de «vítimas», tal como figura no artigo 12.°, n.° 2, desta diretiva.
53 A interpretação que resulta dos n.os 38 a 48 do presente acórdão também não pode ser posta em causa, contrariamente ao que alega o Governo Italiano, pelo artigo 17.° da Diretiva 2004/80, segundo o qual os Estados‑Membros podem adotar ou manter disposições mais favoráveis não apenas para as «vítimas» de crimes mas também para «quaisquer outras pessoas afetadas» por esses crimes. Com efeito, esta última categoria não pode ser entendida no sentido de que se confunde necessariamente com os membros da família próximos da pessoa falecida devido a um ato de crime doloso violento, uma vez que estes são precisamente suscetíveis de terem, eles próprios, a qualidade de «vítimas» abrangidas por esta diretiva.
54 O artigo 17.° da Diretiva 2004/80, que faz parte do capítulo III desta diretiva, relativo às modalidades de aplicação, permite assim aos Estados‑Membros, quando aplicam o seu regime nacional de indemnização das vítimas de crimes dolosos violentos, alargar a categoria de beneficiários desse regime a pessoas diferentes das «vítimas», na aceção do artigo 12.°, n.° 2, desta diretiva.
55 Por conseguinte, há que considerar que o conceito de «vítimas», na aceção desta disposição, em benefício das quais os Estados‑Membros devem instituir, por força da referida disposição, um regime nacional de indemnização, deve ser entendido no sentido de que pode incluir vítimas indiretas de um ato de criminalidade dolosa violenta, como os familiares próximos da pessoa falecida devido a esse crime, quando sofram as consequências desta.
56 Nestas circunstâncias, importa, em segundo lugar, analisar se se pode considerar que uma legislação nacional que, em caso de homicídio, subordina o direito à indemnização dos progenitores da pessoa falecida devido a um ato que se enquadra no crime doloso violento à circunstância de não haver cônjuge sobrevivo e filhos desta última, e o direito dos irmãos e irmãs dessa vítima à circunstância de não haver os referidos progenitores, pode garantir a essas vítimas uma indemnização «justa e adequada», na aceção do artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2004/80.
57 A este respeito, importa recordar que, tendo em conta, por um lado, a margem de apreciação reconhecida aos Estados‑Membros por esta disposição no que respeita tanto ao caráter «just[o] e adequad[o]» da indemnização das vítimas de crimes dolosos violentos como às modalidades de determinação dessa indemnização e, por outro, a necessidade de assegurar a viabilidade financeira dos regimes nacionais de indemnização, a indemnização prevista na referida disposição não tem necessariamente de corresponder às indemnizações suscetíveis de ser concedidas, a cargo do autor de um crime doloso violento, à vítima desse crime. Por conseguinte, esta indemnização não tem necessariamente de assegurar uma reparação completa do dano material e não material sofrido pela vítima (v., neste sentido, Acórdão de 16 de julho de 2020, Presidenza del Consiglio dei Ministri, C‑129/19, EU:C:2020:566, n.os 58 a 60).
58 Neste contexto, cabe, em última instância, ao juiz nacional garantir, à luz das disposições nacionais que tenham instituído o regime de indemnização em causa, que o montante concedido a uma vítima de crimes dolosos violentos ao abrigo deste regime constitui «uma indemnização justa e adequada», na aceção do artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2004/80 (Acórdão de 16 de julho de 2020, Presidenza del Consiglio dei Ministri, C‑129/19, EU:C:2020:566, n.° 61).
59 Todavia, um Estado‑Membro iria além da margem de apreciação concedida por esta disposição se as suas disposições nacionais previssem uma indemnização das vítimas de crimes dolosos violentos puramente simbólica ou manifestamente insuficiente tendo em conta a gravidade das consequências, para essas vítimas, do crime praticado (Acórdão de 16 de julho de 2020, Presidenza del Consiglio dei Ministri, C‑129/19, EU:C:2020:566, n.° 63).
60 Com efeito, uma vez que a indemnização concedida a essas vítimas representa uma contribuição para a reparação do dano material e não material por elas sofrido, essa contribuição só pode ser considerada «justa e adequada» se compensar, numa medida adequada, o sofrimento a que foram expostas (v., neste sentido, Acórdão de 16 de julho de 2020, Presidenza del Consiglio dei Ministri, C‑129/19, EU:C:2020:566, n.° 64).
61 Por conseguinte, embora esta contribuição possa resultar de um regime nacional que prevê uma indemnização fixa das vítimas de crimes dolosos violentos suscetível de variar em função da natureza das violências sofridas, a tabela de indemnizações deve, no entanto, ser suficientemente pormenorizada, de modo que evite que a indemnização fixa prevista para um determinado tipo de violência possa revelar‑se, tendo em conta as circunstâncias de um caso concreto, manifestamente insuficiente (v., neste sentido, Acórdão de 16 de julho de 2020, Presidenza del Consiglio dei Ministri, C‑129/19, EU:C:2020:566, n.os 65 e 66).
62 Por conseguinte, uma indemnização de montante fixo, concedida ao abrigo de um regime nacional de indemnização das vítimas de crimes dolosos violentos deve, para ser qualificada de «justa e adequada», na aceção do artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2004/80, ser fixada tendo em conta a gravidade das consequências do crime praticado para as vítimas e, por conseguinte, representar uma contribuição adequada para a reparação do dano material e não material sofrido (v., neste sentido, Acórdão de 16 de julho de 2020, Presidenza del Consiglio dei Ministri, C‑129/19, EU:C:2020:566, n.° 69).
63 Tendo em conta estas considerações, há que considerar que os Estados‑Membros podem, no exercício da margem de apreciação de que dispõem, decidir instaurar, à semelhança da República Italiana no presente processo, um regime nacional de indemnização das vítimas de crimes dolosos violentos que limita o benefício desse regime aos seus familiares próximos, dando, por outro lado, prioridade a alguns desses membros, como o cônjuge sobrevivo e os filhos, sobre outros membros dessa família, como os progenitores, os irmãos e os irmãs.
64 Tal abordagem «em cascata» corresponde, de resto, à expressamente prevista no artigo 2.°, n.° 2, da Diretiva 2012/29, que permite aos Estados‑Membros estabelecer procedimentos destinados a limitar o número de familiares que podem beneficiar dos direitos previstos nesta diretiva, tendo em conta as circunstâncias concretas de cada caso.
65 Todavia, um regime nacional de indemnização das vítimas de crimes dolosos violentos não pode, em aplicação da lógica da devolução sucessória, excluir de forma automática certos membros da família do benefício de qualquer indemnização pelo simples facto de existirem outros membros da família, sem que possam ser tidas em conta outras considerações além desta ordem de devolução, como, nomeadamente, as consequências materiais resultantes, para esses membros da família, da morte por homicídio da pessoa em causa ou o facto de os referidos membros estarem a cargo da pessoa falecida ou coabitarem com ela. Com efeito, tal regime nacional de indemnização não tem em conta, em violação das exigências recordadas nos n.os 60 e 62 do presente acórdão, o sofrimento e a gravidade das consequências do crime para estes e, por conseguinte, não contribui de forma adequada para a reparação dos seus danos materiais e não materiais.
66 Em especial, privar, como princípio, certos membros da família de qualquer indemnização deve ser considerado inconciliável com essas exigências quando, como no processo principal, um órgão jurisdicional penal concedeu a esses membros da família uma indemnização, aliás não negligenciáveis, pelos danos sofridos devido à morte da pessoa que foi vítima de crimes dolosos violentos, mas o autor do crime não está em condições, devido à sua insolvência, de pagar ele próprio esses danos.
67 Daqui resulta que, como o advogado‑geral indicou no n.° 47 das suas conclusões, um regime de indemnização das vítimas de crimes dolosos violentos, como o que está em causa no processo principal, no qual são afastadas vítimas sem nenhuma consideração pela extensão dos danos sofridos, em razão de uma ordem de prioridade predefinida entre as diferentes vítimas que podem ser indemnizadas, e baseado apenas na natureza dos laços familiares dos quais são retiradas meras presunções quanto à existência ou à importância dos danos não pode conduzir a uma «indemnização justa e adequada», na aceção do artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2004/80.
68 Consequentemente, há que responder à primeira questão submetida que o artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2004/80 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro que prevê um regime de indemnização das vítimas da criminalidade violenta que subordina, em caso de homicídio, o direito à indemnização dos progenitores da vítima à circunstância de esta não ter cônjuge sobrevivo e filhos, e o direito dos irmãos e irmãs da vítima à inexistência dos referidos progenitores.
Quanto às despesas
69 Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quinta Secção) declara:
O artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2004/80/CE do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa à indemnização das vítimas da criminalidade,
deve ser interpretado no sentido de que:
se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro que prevê um regime de indemnização das vítimas de criminalidade violenta que subordina, em caso de homicídio, o direito à indemnização dos progenitores da vítima à circunstância de esta não ter cônjuge sobrevivo e filhos, e o direito dos irmãos e irmãs da vítima à inexistência dos referidos progenitores.
Assinaturas
* Língua do processo: italiano.
1 O nome do presente processo é um nome fictício. Não corresponde ao nome verdadeiro de nenhuma das partes no processo.